quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Anilhar para conservar

Informação agora disponível em: http://anilhagemdeaves.weebly.com

Artigo sobre o experiente anilhador inglês Peter Fearon, publicado na edição de Outono de 2007 na Revista Parques e Vida Selvagem:


Se alguém disser que Peter Fearon esbranquiçou os seus cabelos em demoradas sessões de anilhagem científica de aves selvagens não estará longe da verdade. Exercida esta actividade nas suas férias, um pouco por todo o mundo, alcançou o Parque Biológ
ico de Gaia no fim do ano passado. Lançámo-nos à conversa..

Peter Fearon mostra a algumas crianças que visitam a sala de anilhagem do Parque Biológico de Gaia um tentilhão-comum e sorri. Dificilmente lhe ouvimos a voz, concentrado no caudal de aves a medir, pesar, anilhar e soltar.
A presença deste homem discreto exala um respeito que atinge os presentes, até mesmo entre experientes anilhadores. E, no entanto, não é biólogo! Pode estranhar à vontade: este homem é químico!
Licenciado pela Universidade de Liverpool em 1966, com Grau de Honra em Química, após uma passagem pela indústria regressou à vida universitária como aluno de doutoramento na Universidade de Nottingham, tendo obtido o grau de doutor em 1974. Diz: «A partir daqui tornei-me professor, e foi esta a minha profissão nos últimos 33 anos».
O seu interesse pela ornitologia e pela observação de aves surgiu desde muito cedo: «Enquanto ainda frequentava a Universidade encontrei um amigo com o mesmo interesse». Juntos iniciaram «a observação de aves com regularidade não só em Inglaterra, mas em vários países da Europa, desde o Norte até ao Sul, incluindo alguns países do Bloco de Leste. Partilhámos algumas aventuras engraçadas e uma ocasião, na antiga Jugoslávia, acabámos até na prisão! Foi na altura da invasão da Checoslováquia pelos russos em 1968 e as nossas actividades eram consideradas suspeitas!».
Através desta paixão pela observação de aves selvagens «estabeleci contacto com vários anilhadores e resolvi dedicar-me a esta actividade. Iniciei a anilhagem no início dos anos 60, quando ainda era estudante universitário e rapidamente obtive uma licença do tipo “A” emitida pelo British Trust for Ornithology (B.T.O.), organismo responsável pela anilhagem em Inglaterra». As credenciais do tipo “A” permitem, para além de anilhar, poder dar formação a novos anilhadores.

Impunha-se perguntar: Quer dizer-nos algo sobre a sua primeira experiência de anilhagem no Parque Biológico de Gaia, em particular quando anilhou
chapins-carvoeiros?

Peter Fearon — Gostei muito da sessão de anilhagem em que tive o prazer de participar no Parque Biológico de Gaia, em Dezembro último, por convite do Rui Brito e do António Pereira. Fiquei impressionado com todas as condições e qualidade do local. O Parque Biológico fez-me lembrar de um local onde um amigo meu costuma anilhar em Nottingham, mas que é privado. Fiquei invejoso das condições existentes e do próprio sítio: quem me dera ter as mesmas condições que ali encontrei em Inglaterra. Com o decorrer do tempo obterão muita informação sobre as aves do Parque e vão construir um padrão da população das várias espécies e dos seus movimentos, o que é de extrema importância ao nível da conservação. O apoio dos responsáveis do Parque e dos seus colaboradores, pelo que pude verificar, é enorme, o que é de registar. O Parque é muito bonito e mantém excelentes instalações. O centro de recepção aos visitantes é
impressionante, com instalações muito agradáveis e brilhantes serviços ao nível da educação ambiental. A forma como fui recebido e a hospitalidade que me dispensaram foi do outro mundo e por isso agradeço a todos. Sobre o chapim-carvoeiro, esta espécie é abundante em Inglaterra e capturo-a e anilhoa regularmente, seja num dos locais onde costumo anilhar ou até no meu jardim. No entanto, é verdade que em Portugal nunca tinha anilhado nem tão-pouco sequer observado nenhum nos últimos 30 anos, até agora, aqui no Parque. Foi muito gratificante para mim poder finalmente segurar nas mãos e anilhar o primeiro chapim-carvoeiro que anilhei em Portugal, dado que é uma das minhas espécies de aves favoritas.

Gostava de voltar a anilhar no Parque Biológico de Gaia?
P. F . — Sim, sem qualquer dúvida adoraria voltar lá e espero fazê-lo, mal surja uma oportunidade.

Desde 1978 que visita com assiduidade Portugal. Porquê?
P. F . — A primeira vez que vim a Portugal, foi em Agosto de 1974, durante três semanas passadas em Lameira, perto de Arzila, no vale do Mondego, entre Coimbra e Figueira da Foz. As pessoas locais eram de uma enorme simpatia e muito hospitaleiras. As crianças eram muito curiosas e costumavam visitar-nos no nosso acampamento todos os dias. Nessa altura fomos convidados a ir a casa de um habitante local que produzia o seu próprio vinho e aguardente. Foi a minha primeira experiência com o vinho e aguardente lusos. Foi sem dúvida o início de um já longo romance com o vinho português. As notícias propagaram-se rapidamente entre a população local e todos rapidamente ficaram a saber que eu tinha dado uma “grande” contribuição no peditório realizado na missa de sábado, na igreja local. Todos os fins-desemana parecia que havia uma enorme festa pelas diversas vilas locais e pude tomar contacto com a cultura e tradições locais. Uma das características que me impressionou naquela altura foi o amor que os adultos tinham pelas crianças. Em 1978, visitei pela primeira vez a Lagoa de Santo André, e desde então venho todos os anos para essa zona magnífica da costa alentejana, hoje Reserva Natural. As únicas excepções foram quando a minha esposa Anne estava grávida. Nos primeiros anos, costumava visitar o Ludo, perto de Faro, para fazer anilhagem de limícolas — espécies de aves pernaltas que se alimentam na vasante —, durante alguns dias, normalmente no final da nossa estadia em Portugal. Os habitantes locais de Santo André eram também muito hospitaleiros e, desse modo, este local tornouse a nossa “casa” durante o mês de Agosto. Tratava-se de uma região abençoada pelo sol, quente e com tempo seco, possuidora de uma praia muito boa perto. O bosque e toda a área envolvente ao acampamento de anilhagem era perfeito para as crianças brincarem e terem aventuras. O único problema que tivemos foi com a caça e os caçadores, mas felizmente agora terminou. No início, a única razão para vir para Portugal foi anilhar aves, principalmente espécies que não ocorriam em Inglaterra, ou as provenientes de Inglaterra rumo ao Sul, ou ainda para treinar e formar anilhadores portugueses. Com o passar dos anos fomos fazendo muitos bons amigos e os meus filhos adoram tanto o país que não podemos sequer pensar em fazer férias em qualquer outro sítio. Ao longo destes anos fomos visitando grande parte do país e, além do Alentejo, participámos no «Atlas das Aves Nidificantes em Portugal no Algarve», visitámos o Parque Natural de Montesinho, os arredores de Lisboa e a própria cidade, e passamos todos os anos algum tempo perto de Coimbra, desfrutando da hospitalidade da família do Paulo Tenreiro, um grande anilhador português. No ano de 1983 tivemos a sorte de poder visitar as ilhas Selvagens para participarmos em trabalhos de censos de aves. Tem sido interessante encontrar tantos habitat tão diferentes e diversificados num país tão pequeno e eu e a minha família gozamos muitas das várias experiências possíveis, desde as magníficas praias de areia, passando pelas florestas e as mais selvagens e inóspitas zonas de montanha.

Alguma vez capturou aves já anilhadas noutros países em Santo André?
P. F . — Já recapturámos muitas aves com anilhas estrangeiras ao longo dos anos em Santo André – maioritariamente rouxinóispequenos- dos-caniços e felosas-dos-juncos, com anilhas de Inglaterra, Holanda, França e Bélgica. Algumas das mais notáveis recapturas incluem um rouxinol-pequeno-dos-caniços, com uma anilha checa e uma felosa-musical com uma anilha da Hungria. Outra experiência magnífica que vivemos prende-se com a recaptura, num dos anos em que anilhámos no Ludo, de um pilrito-comum, que tinha sido anilhado por nós em Inglaterra, e uma cigarrinha-ruiva que tínhamos anilhado há umas semanas em Santo André. Outra recaptura fantástica foi a de uma felosa aquática, que nós voltámos a recapturar dois anos depois quase exactamente no mesmo dia. Existiram ainda dois guarda-rios, que raramente efectuam grandes migrações, que mostraram incríveis movimentos, um para a Holanda e o outro para a Bélgica onde foram recapturados.

Em Portugal a anilhagem é uma actividade desempenhada maioritariamente por cientistas, logo não é popular. Na Grã- Bretanha quem a desempenha são pessoas credenciadas mas com as mais variadas profissões. Como explica este contraste?
P. F . — Em Inglaterra a anilhagem iniciou-se em 1909 e era tradicionalmente realizada por
amadores. Surgiu e cresceu através de observadores de aves como um passatempo. Durante os primeiros 50 anos de anilhagem, as aves eram capturadas em armadilhas ou eram anilhadas enquanto crias no ninho. A maioria das sessões de anilhagem realizavamse nos jardins dos próprios anilhadores. O trabalho académico, utilizando esta ferramenta resumia-se a anilhar crias em caixasninho ou então crias em colónias de espécies marinhas. A introdução das redes verticais, chamadas mist-nets, nos finais da década de 50 transformou totalmente a estrutura da
anilhagem, permitindo capturar aves adultas em múltiplos habitat diferentes. Isto ajudou a
encorajar mais amadores e académicos a começarem a anilhar. No entanto, dos 2 mil anilhadores credenciados existentes em Inglaterra, a grande maioria são amadores. Tradicionalmente em Inglaterra temos de comprar as anilhas e estas são caras. Isto permitiu aos anilhadores tornarem-se muito independentes e anilharem o que mais gostassem. No entanto, por causa do custo elevado das anilhas, os anilhadores formaram entre si grupos de anilhagem, partilhando,
deste modo, os custos inerentes. Dentro da estrutura dos grupos eram encorajados projectos com certas espécies e em áreas definidas. As conferências anuais de anilhadores, com a participação de mais de 400 anilhadores, permitiam uma interessante e salutar troca de ideias e a apresentação de resultados, num evento que reunia académicos e amadores com as aves por pano de fundo. Em Inglaterra, não existe a tradição, ao invés de Portugal, da caça às aves. Penso que em Portugal tem sido feito já um esforço de sensibilização, mas ainda existe um longo caminho pela frente no sentido de educar a população e levá-la a apreciar actividades como a observação das aves e a anilhagem, bem como o convívio com a natureza e vida selvagem em geral, em substituição do «prazer» de as matar.
O início da anilhagem em Portugal ocorreu no Porto, baseado na Universidade e dirigido pela Sociedade Portuguesa de Ornitologia e pelo Prof. Santos Júnior, tendo depois da morte deste sido abandonada. A actual Central Nacional de Anilhagem é relativamente recente e ainda se encontra em desenvolvimento e crescimento à medida que mais pessoas descobrem o valor, a importância e o prazer de estudar as aves. Esta Central é tutelada pelo Estado português através do Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade, ao contrário da Central Inglesa, da
responsabilidade do BTO, um organismo privado.

Quer contar-nos alguma das histórias recolhidas na sua longa actividade de anilhagem científica?
P. F. – Depois de todos estes anos a anilhar, existem, sem dúvida, diversas histórias interessantes. O meu filho mais velho, também Peter Fearon, quase nasceu no local em que costumamos anilhar em Inglaterra. Tínhamos apanhado muitos andorinhões e andorinhasdos-
beirais, quando a minha esposa Anne me disse que pensava que era tempo de ir para o Hospital. E claro que a minha resposta foi que não poderíamos ir enquanto não terminássemos
de anilhar todas as aves!
Em Portugal há diversas histórias de pessoas que ficaram atoladas na lama, que foram atingidas por pedras que se soltaram dos penhascos ou que ficaram presas no topo de árvores durante actividades de anilhagem.
Nos primeiros anos, em Santo André, tivemos várias aventuras com as vacas que muitas vezes conseguiam escapar pelas vedações e provocar estragos. Disseram-me que a imagem mais divertida de sempre foi uma vez quando eu e o Paulo Catry, em mais uma visita às redes para recolher as aves capturadas, demos de caras com um touro! Após termos tentado assustá-lo e afastá-lo das redes durante mais de meia hora, sem sucesso, conseguimos finalmente pô-lo a correr – atrás de nós! Felizmente não há fotografias do momento...

O que aconselha a quem se quiser tornar um bom anilhador, dada a importância deste trabalho para a conservação da natureza?
P. F. – Para ser um bom anilhador é necessário ser muito paciente e desejar aprender. Requer
uma boa capacidade de identificação das aves e conhecimento sobre as diferentes espécies, o que pode levar bastante tempo e dedicação a conseguir. Os anilhadores necessitam de colocar sempre a segurança da ave em primeiro lugar e serem capazes de as manipular sem lhes causar qualquer dano. A anilhagem de aves desempenha um papel vital na conservação da natureza. Permite monitorizar os movimentos das aves, as suas rotas de migração, a longevidade e distribuição das espécies. A estrutura etária das populações e o recrutamento para as populações de aves jovens podem igualmente ser estudados numa escala global. O tamanho das populações e a sua tendência populacional podem também ser monitorizados em locais-chave. Os dados provenientes da anilhagem podem ainda ajudar a identificar a importância de certos sítios que podem estar ameaçados por diversos factores e fornecer dados concretos e evidências que ajudem à preservação desses mesmos lugares.

Texto: António Pereira, Jorge Gomes e Rui Brito

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